PADRE TICÃO: UM PROFETA EM SINTONIA COM SEU TEMPO
(Professor Waldir A. Augusti - Diretor Geral/Presidente do Instituto Padre Ticão)
Padre Ticão foi, durante toda sua existência como padre e líder comunitário, um daqueles homens sobre os quais podemos dizer “totalmente sintonizados com seu tempo e a sua realidade”.
Desde o início de sua vida sacerdotal, optou por ser um “pastor com o cheiro de suas ovelhas”, um pastor que não conduzia - caminhando lado a lado com - "seu" rebanho apenas por meio de palavras, mas com ações. Padre Ticão nunca foi um padre com “cheiro de sacristia”.
Em meados da década de 1970 -período em que o Brasil era governado pela ditadura civil-militar, iniciada com o golpe de 1964-, Ticão transferiu-se para São Paulo para dar continuidade aos estudos na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, no bairro do Ipiranga. Ao lado de homens como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Helder Câmara e Dom Angélico Sândalo Bernardino, dentre outros, que sob as luzes do Concílio Vaticano II, eram inspirados pela Teologia da Libertação. Ticão, então, abraçou com entusiasmo profético essa nova maneira de enxergar e atuar sobre o mundo, impregnado pela miséria, a pobreza e as injustiças sociais, visando combatê-las na prática cotidiana, mudar efetivamente para melhor a vida dos trabalhadores e trabalhadoras.
E foi com esse desejo de transformar a triste realidade em que o Povo de Deus se encontrava, que o Padre Ticão veio parar na Zona Leste de São Paulo, uma das regiões mais periféricas, mais populosas e, não apenas por isso, mais potentes da cidade. Acolhido e abraçado por Dom Angélico, trabalhou durante 4 anos nas Vilas Ré e Granada até que, em abril de 1982, recebeu do Bispo a responsabilidade de ser o Pároco da paróquia São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, onde permaneceu até o início de sua vida na eternidade, ocorrido em 1º de janeiro de 2021.
A situação de total abandono em que se encontravam os moradores do local, o levou de imediato a colocar-se não à frente do rebanho, mas no meio dele. Com esta iniciativa, Ticão pode conhecer muito de perto o sofrimento daquelas gentes, nosso povo.
Em total sintonia com o Bispo local, Ticão deu início a uma verdadeira revolução no modo de conduzir sua paróquia, adotando o modelo de uma Igreja ministerial, acolhedora, inspiradora e libertadora em sua práxis, por meio da qual o centro da teologia passava a ser a esperança de libertação do povo oprimido a partir da realidade cotidiana em que se encontrava, ou seja: trilhar a passagem do cativeiro à liberdade a partir da experiência de libertação registrada no livro do Êxodo.
Padre Ticão, servindo-se do consagrado método "Ver, Julgar e Agir", mostrou ao povo (e aprendeu com ele) que era possível transformar ou até mesmo revolucionar aquela realidade, e que essa transformação profunda passa, necessariamente, pelo pleno direito à moradia, à saúde, à educação, à alimentação, ao transporte, à segurança, ao emprego com salário e direitos trabalhistas dignos, e ao que mais fosse necessário, para uma vida digna e o mais plena possível.
Mas as dificuldades eram grandes. Era preciso oferecer às pessoas uma formação que as fizesse se sentir realmente protagonistas do processo. Uma formação capaz de despertar em cada um/a a certeza de que era preciso caminhar juntos, lutar juntos para juntos conquistarem seus direitos. Conquistarmos nossos direitos. E assim se deu.
Movimentos inclusivos por saúde, educação, cultura e moradia, amplo e democrático acesso a políticas (incluindo cada uma das pessoas e/ou grupos com necessidades especiais, da primeira infância à terceira idade), dentre outros, envoltos pela certeza inspiradora de que “o povo unido jamais será vencido”, foram se organizando, fortalecendo e crescendo. A Igreja São Francisco de Assis, de Ermelino Matarazzo, virou sinônimo de organização popular e, seu pároco, referência de liderança religiosa, social e democrática - não apenas para a Zona Leste e a cidade de São Paulo, mas inspirando também lideranças e outras referências afins mundo afora.
As conquistas alcançadas foram muitas. Dentre elas estão: o Hospital de Ermelino Matarazzo Dr. Alípio Corrêa Neto; diversas UBSs; 40 mil moradias; inúmeras Creches; a FATEC e a ETEC Zona Leste, a USP Leste, a Unifesp Zona Leste, o Instituto Técnico Federal, as Casas da Terceira Idade, O Centro de Referência do Idoso, a Associação da Casa dos Deficientes de Ermelino Matarazzo, o Projeto Samaritano para atender soropositivos, a Associação Voz da Comunidade, o Parque Dom Paulo Evaristo Arns, os Movimentos de Cultura Popular, o projeto Saber Mais, a Escola de Cidadania da Zona Leste, a Rede de Escolas de Cidadania de São Paulo e outros mais.
Na esfera religiosa, instalou e apoiou mais de 30 Pastorais como as da Juventude, da Educação, do Idoso, da Moradia, da Saúde, da Comunicação, da Criança, a Operária, a Carcerária, do Povo da Rua, a Familiar, a da Mulher e a da Sobriedade.
No ano de 2018, a Escola de Cidadania da Zona Leste voltou-se para a área da saúde integral, visando estudar uma Medicina Alternativa, Educativa, Integrativa, Natural e Holística. Aulas sobre Homeopatia, Fitoterapia e Naturopatia, com seus diversos seguimentos, foram e continuam sendo ministrados. Porém, o que mais atraiu a atenção da sociedade como um todo, foi a instauração -em parceria com a Unifesp-, do Curso Livre Sobre Cannabis Medicinal que já está em sua 7ª edição, agora em 2022, somando mais de 35 mil participantes.
Pela primeira vez na história -pelo menos no que conhecemos-, Ticão foi um padre católico pioneiro a defender o uso medicinal da maconha, ousando enfrentar a hipocrisia praticada por muitos “cristãos católicos” que aceitam o fato de os mais ricos terem acesso aos inúmeros, e cientificamente mais do que comprovados, diversos benefícios medicinais desta planta, mas se posicionam contrariamente quando alguém defende o direito dos mais pobres de terem o mesmo acesso.
A ousadia profética do Padre Ticão trouxe muitas alegrias; mas também momentos de tristeza. Fiel à Teologia da Libertação, Ticão trilhou seus passos com convicção, esperança e coragem. Mesmo diante do reconhecimento do Vaticano sobre a riqueza desta Teologia, grupos de “cristãos” detentores de uma mentalidade retrógrada que acredita numa religião individualista e intimista ligada mais à emoção, e aos apelos por ela produzidos, que à razão, chamaram para si o direito de tentar (e d’alguma forma conseguiram) perseguir, julgar e condená-la, estendendo o julgamento àqueles que nela sempre acreditaram, acreditam e a colocam em prática, como o Padre Ticão e outros milhões de pessoas pelo mundo.
Por fim, podemos dizer -parafraseando Carlos Strabelli (in Memoriam), amigo próximo e querido-, que o Padre Ticão não gastou seu tempo em reuniões infecundas ou em floreios canônicos-litúrgicos. Usou seus dias transitando em gabinetes, driblando demagogos, enfrentando indiciamento pela Lei de Segurança Nacional, as prisões que lhe foram impostas e insistindo, a tempo e fora de tempo, em acreditar na eficácia das respostas concretas traduzidas em conquistas alcançadas pelas pessoas coletivamente. Por onde andou semeou esperanças, fé e coragem, mantendo acesa a chama da utopia real de um outro mundo possível. De alguns dos seus ensinamentos, e foram muitos, aprendemos que é na partilha do pão, na comunhão com os irmãos e na ousadia da fé que podemos transformar o mundo.
No segundo semestre de 2020, Ticão e Professor Waldir acharam por bem fundar um Instituto, que permanecesse a serviço das obras já instaladas e dos novos projetos que viriam. Assim, em setembro daquele ano criaram o “Instituto Verdades”. Estava nos planos de ambos apresentarem o novo Instituto à toda a comunidade no mês de fevereiro de 2021. Porém, o padre Ticão fez sua Páscoa 1 mês antes.
Sendo assim, a Comunidade representada optou por dar ao novo Instituto o nome do "Padre Ticão". E assim foi. O Instituto Padre Ticão (IPeTi) foi criado e está sendo implantado com a missão de dar continuidade aos trabalhos e projetos por ele iniciados e apoiar, potencializar, conectar e inspirar novas ações de cunho social a seguirem movendo as estruturas da sociedade por um mundo mais justo e igualitário. Com esta certeza no coração seguimos em frente - pelo Bem Comum.
E agora, “...vamos precisar de todo mundo, um mais um é sempre mais que dois...” (Beto Guedes: "O Sal da Terra").
Com sua ajuda, faremos realizar todos os projetos que teremos pela frente.
Contamos com sua generosidade e parceria, sua solidariedade ativa.
Deixamos aqui, por último mas não por fim, uma frase do Padre Ticão, que talvez bem traduza sua opção de vida, e que para nós se tornou um dos lemas de nosso novo Instituto:
“O que mais importa, é que todos possam viver com dignidade; e se para que isso aconteça tivermos que lutar a vida inteira, lutaremos! Usaremos nossas mãos e toda nossa capacidade para servir sem nunca esperar ser servido”.
Shalom! ❤