Todos os Amores de Lourdes - Vol. 2

"Havia um peso no peito, Porréessa? Leide longe, mas não era isso. Intensificou as orações solitárias, buscou respostas que não vinham, sabia que era difícil qualquer informação ‘do lado de lá’ quando queria saber coisas sobre si ou sobre os seus. Aquele 1994 havia começado calmo demais. A manhã de sol parecia cinza, Mãe vou ali, Ali onde Clóvis?, Ali e volto logo, Cuidado na vida, Tenho sim, Cadê meu cheiro? Deu e saiu. A rua tranquila, seguiu com passos firmes mas quietos. Já foi bem mais pra frente, ainda no Sítio das Palmeiras, que escutou a moto reduzir a velocidade, a mulher grávida em frente à casinha, o pacote jogado, Guarda isso aí que depois nóis vem buscar!, Aqui não!, Guarde que a polícia tá atrás da gente, porra!, Aqui é casa de família, vão fazer coisa errada noutro lugar!, e sacodiu o pacote de volta. A moto então parou totalmente, o cara da garupa nem desceu, só apontou a metralhadora e foi bala cuspida sem dó! Clóvis jogou-se por detrás de um carro que tava estacionado, mas viu tudo, tudo, a moto reacelerar, a gestante com a barriga rasgada caindo na calçada, segurando o que sobrou do bucho, a queda, útero dependurado, o cadáver, o feto, sangue e mais sangue, cena inimaginável. N’era homem de não agir não: correu e pegou o agora bebê, rasgou o cordão umbilical e deu um nó, viatura da polícia se aproximando, armas em punho, Tá preso feladaputa!, Foi ele não, ele salvou o menino!, o policial se aproximando, Tem que levar ela pro hospital seu guarda, salve esse bebê pelo amor de Deus! Foi um fuzuê na rua, multidão em volta do corpo. A viatura seguiu com o bebezinho pro hospital e dois policiais ficaram com Clóvis, que nem pestanejou, contou tudo: a cor da pele dos assassinos, roupas, cabelos, tatuagens, a arma, os tiros, contou tudo, Foi a galera do Bacanal de Torrões! A polícia então o levou para depor, todo mundo já tinha ouvido o que ele falou ali no local, viu a saída com os policiais, todo mundo viu. Somente horas depois Clóvis voltou pra casa, sangue na roupa, coração de mãe girando, Minha Nossa Senhora Clóvis, que porra foi essa? Contou tudo o que tinha visto, firme e forte.

– Meu filho, fique calado, não fale nada do que você viu a ninguém!

– Já falei, mãe.

– O quê?

– Disse em depoimento e vou dizer de novo na audiência!

– Você tá doido, menino? A gangue mais perigosa daqui vai te matar Clóvis, porra Clóvis!

– Aqueles filhos da puta vão pagar pelo que fizeram!

– Pagar o quê, Clóvis? Vão te queimar!

– Num sou homem de ver uma coisa dessa e ficar calado não, mainha!

– Você quer me matar Clóvis? Porra Clóvis!

– É por conta de tanta gente covarde que o mundo tá desse jeito. E eu não sou covarde. Eu vi!

Lourdes se calou. Falou já pensando em solução, Tu vai ter que sair daqui, Clóvis, Vou sair não, mainha, deixe de coisa que num vai acontecer nada não, Tu vai sair sim, porra! A conversa parou ali. Em menos de três dias o zunzunzum corria solto no bairro, O filho de Lourdes é cabueta, Vão queimar o boy logo, Burro, devia ter ficado calado!, e Lourdes segura de como agir: ligou pra Leide e ajustou tudo: Clóvis fugiria às escondidas pra lá. Àquela altura o rapaz nem questionava mais a mãe, seguiu à risca o planejado, pediu licença do emprego na Federação Pernambucana de Futebol e na madrugada seguinte foi de ônibus pra tal cidade maravilhosa. Foi lá no Rio que soube que o bebê sobreviveu graças a ele, e que era uma menininha. Também, que a gangue tava espumando atrás dele, jurado de morte. Se você voltar, quem vai lhe matar sou eu!, escutou bem alto no telefone. Sabia que a mãe não brincava em serviço.  Aquietou o facho por lá mesmo, em terras cariocas. Tá na mão de Deus!"